Para os fiéis católicos, a Quarta-feira de Cinzas representa uma celebração de grande simbolismo, sendo um momento essencial na preparação para a Páscoa, que ocorre 40 dias depois. Tradicionalmente, essa data marca o encerramento do Carnaval e o começo de um período de introspecção e penitência, conhecido como Quaresma — funcionando como um divisor entre o tempo de festividade e o compromisso espiritual.
Durante as missas, acontece um rito especial no qual o padre e seus ministros impõem um pouco de cinzas sobre a cabeça dos fiéis ou desenham uma cruz na testa. Neste momento, o sacerdote pode escolher entre duas expressões: "Convertei-vos e crede no Evangelho", que enfatiza a necessidade de transformação espiritual e renúncia aos prazeres mundanos em busca de uma conexão mais profunda com Deus; ou "Lembra-te que és pó e ao pó voltarás", recordando a transitoriedade da vida.
Segundo o vaticanista Filipe Domingues, professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, ambas as frases refletem os principais significados das cinzas: a humildade diante da efemeridade da existência e o chamado ao arrependimento e renovação espiritual.
A tradição da Quarta-feira de Cinzas teve início entre os séculos III e IV como uma manifestação espontânea dos primeiros cristãos. Nesse período, os fiéis costumavam cobrir-se de cinzas como sinal de penitência pública em preparação para a Quaresma.
Conforme explica a historiadora e vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora da Pontifícia Universidade Gregoriana, essa prática foi formalmente incorporada à liturgia cristã pelo Papa Gregório Magno (540-604), no final do século VI. Ele instituiu a data com o nome de "capite ieiunii", que significa "o dia em que se inicia o jejum".
Registros históricos apontam que, na cidade de Roma, a cerimônia ocorria em absoluto silêncio e era conduzida pessoalmente pelo Papa, que organizava uma procissão nos arredores das basílicas de Santa Anastácia e Santa Sabina.
O historiador e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, ressalta que a Quarta-feira de Cinzas e o período de 40 dias da Quaresma surgiram nas comunidades cristãs primitivas como uma época de reflexão, arrependimento e renovação espiritual.
As cinzas utilizadas na celebração possuem dois significados fundamentais. O primeiro está ligado à fragilidade da vida humana, relembrando a criação do homem a partir do pó da terra e sua inevitável mortalidade, conforme descrito no Antigo Testamento. O segundo aspecto é a ideia cristã de arrependimento e conversão, baseada nos ensinamentos de Jesus, que convocava seus seguidores à mudança interior e ao desapego das tradições legalistas do judaísmo da época.
O padre Eugênio Ferreira de Lima, assessor da Comissão dos Movimentos Eclesiais da Diocese de Itabira (MG), ressalta que há diversas passagens bíblicas que fazem referência ao uso das cinzas como símbolo de purificação, penitência e lembrança da efemeridade da existência.
No livro do Gênesis, por exemplo, Deus alerta Adão sobre as consequências de sua expulsão do Éden, afirmando: "No suor do teu rosto comerás o pão, até voltares ao solo, pois dele foste tirado. Sim, és pó e ao pó voltarás."
Outros trechos da Bíblia também reforçam essa simbologia, como em Jó, onde se lê: "Repetis à exaustão máximas de cinza, torres de argila são vossas defesas." Já no segundo livro de Samuel, há a cena em que "Tamar tomou cinza e derramou sobre a cabeça, rasgou sua túnica de princesa, pôs as mãos na cabeça e afastou-se gritando."
No livro de Jonas, há um dos exemplos mais expressivos da relação entre cinzas e arrependimento: quando os habitantes de Nínive tomam consciência de seus pecados, proclamam um jejum e cobrem-se de saco e cinza para demonstrar sua conversão. "Eles proclamaram um jejum e se vestiram de sacos, desde os grandes até os pequenos [ ]. Ele se levantou do trono, tirou o manto real, cobriu-se de saco e sentou-se sobre a cinza."
Já nos textos do Novo Testamento, as cinzas continuam sendo associadas ao arrependimento e à necessidade de transformação espiritual. No Evangelho de Mateus, Jesus critica as cidades que não atenderam à sua mensagem e afirma que, se tivessem reconhecido seus pecados, "cobertas de saco e cinza, elas se teriam convertido."
Na carta aos Hebreus, há outra referência simbólica às cinzas, mencionando que "a cinza de novilha esparzida sobre os seres maculados os santificam, purificando-lhes os corpos."
De acordo com o padre Eugênio Lima, essa tradição é um convite da Igreja para que os fiéis reflitam sobre a transitoriedade da vida e sobre o que realmente importa na existência terrena. "Somos chamados a entrar nesse tempo de Quaresma dedicando mais tempo à Palavra de Deus, abrindo o coração para reconhecer a presença de Cristo entre nós — aquele que passa fome, que sofre injustiças, que precisa de abrigo e sustento."